sexta-feira, 18 de julho de 2014

Memórias de um viajante antiquário



"Cidade de 1729, banhada pelo famoso Rio das Almas. Lá existem todos os vestígios do que era uma boa cidade colonial. As quatro igrejas - uma delas, a do Rosário, foi demolida -, os prédios antiquíssimos, o calçamento de pedras coloniais. Tudo nos transporta a um passado longínquo. Mas o que mais chama a atenção em Meia Ponte é a riqueza da Matriz! Excelente arquitetura colonial; altares com entalhes barrocos; imagens preciosas. E as pratarias? Arrobas de prata setecentista!

Meu saudoso amigo, Prof. Jarbas Jaime diz, numa de suas magníficas obras que as pratarias da Matriz foram doação do grande homem de Meia Ponte, o fundador da imprensa goiana, Comendador Joaquim Alves de Oliveira. É provável que haja um equívoco. Jarbas Jaime, pesquisador como era, pode ter encontrado e transcrito alguma outra doação, provavelmente não referente às pratarias da Matriz. Impossível não seria; seria improvável. Toda aquela prataria é do século XVIII, e o comendador só nasceu no fim desse século. As pratas da Matriz são das épocas e dos estilos de D. João V e D. José, precedendo, de cinquenta anos, o nascimento do grande homem. Do tempo do comendador vi apenas uma naveta, mal feita, de inscrição pobre. Talvez houvesse Alves de Oliveira doado outras peças de prata que, por não serem essenciais ao culto, foram passadas a igrejas menos importantes.

Pirenópolis – cidade dos Pireneus – passou a assim chamar-se pela proximidade da serra de mesmo nome, com 1380 metros de altitude.

Conheci em Pirenópolis outro comendador, sogro do Dr. Wilson Pompeu de Pina, honesto homem que muito trabalhou em benefício das igrejas locais. A menina dos seus olhos era a capelo no alto dos Pireneus, onde todos os anos a tradição revive grande romaria. Dele comprei diversas peças da antiga Igreja do Rosário, destinando o produto da venda à ajuda na construção de um ginásio, obra em que, com zelo e dedicação, se esmerou.

Da primeira vez que fui a Pirenópolis, travei conhecimento com Dr. Sá, juiz da comarca que tentava vender uma fazenda nas bordas da cidade. Consegui que ele a alienasse ao Senhor Natan, joalheiro de São Paulo. Nasceu entre nós uma certa afinidade, e quase todas as noites nos reuníamos na residência do Prof. Jarbas, que fora chefe da Segurança Pública do governo Pedro Ludovico.

Pirenópolis estava repleta dos mais belos móveis coloniais que já vi. O palácio de Joaquim Alves de Oliveira fora demolido em 1868. Era enorme. Saint-Hilaire o descreve e ao engenho são Joaquim como propriedades-modelo, afirmando ser o comendador o homem mais rico do Brasil central. Permanecem na cidade todos os móveis de seu palácio.

Belíssima peça do comendador, vendi-a ao grande colecionador Sr. Hélio de Almeida Leite: estante para livros “D. João V”. Muitas outras residências ricas também existiram e algumas ainda existem. Lembro-me de que frente à residência do Prof. Jarbas havia uma bonita casa colonial, cujas janelas permaneciam sempre abertas. Vendo um belo exemplar de mesa holandesa, pé-de-lira, abeirei-me da dona da casa, comprei a mesa e trouxe-a para São Paulo. O Dr. João Marino foi quem a adquiriu.

Comprei, ainda, alguns bancos “de orelha”, com babados na parte inferior, bem como duas magníficas mesas de encosto. 

As principais famílias possuíam copos e salvas de prata. As candeias de azeite, latonadas, constituíam outro utensílio que por toda a parte se encontrava.

No século passado, havia na cidade um santeiro que fora eleito deputado provincial. Mudou-se para a capital, mas, anos depois, desiludido da política, voltou à sua terra e à antiga profissão: era o escultor Veiga Vale. Visitando Meia Ponte, o bispo de Goiás, D. Ponce de León, frente à casa do escultor “esbarrou” com um Menino Jesus. Impressionadíssimo, ajoelhou-se diante da bela imagem; mais tarde, levou-a para o Vaticano.

Comprei diversas imagens de Veiga Vale. Pode-se dizer que era um “especialista” em Menino Jesus. Nas peanhas das imagens que confeccionava, existiam sempre quatro “pompons” pendurados. As Madonas, de impecável face, são muito bem cuidadas.

Obtive, numa só rua, três mesas pé-de-lira. Uma delas, com losangos laterais nas gavetas, está com o Dr. Júlio Kieffer. Outra, vendi-a ao meu distinto amigo Dr. Linneu de Camargo Schutzer. A última está com a Sra. D. Catarina, fabricante de abajures.

Travei conhecimento com os irmãos Pompeu de Pina: Benedito e Wilson Braz, aristocratas estimadíssimos na cidade. Ajudaram-me bastante. Em minha ausência adquiriam, nas fazendas e na cidade, peças interessantes.

Outros dois irmãos que me venderam muita coisa foram os Curado. Um, médico; o outro negociante. Deste último obtive bela papeleira. Compraziam-se em contar que descendiam do General Joaquim Xavier Curado, herói das lutas do Prata e Ministro da Guerra de D. Pedro I. Não se esqueceram de contar que o general, falecido no Rio, fora enterrado com suntuosas pompas e grandes honras.

Fui a Pirenópolis mais de dez vezes . Numa delas comprei um “monte” de entalhes que estava depositado na sacristia da Matriz. O velho comendador, que tomava conta de tudo, reuniu a “irmandade dos homens pardos de nossa Senhora do Rosário” e, na reunião foi autorizada a venda, evento registrado em ata. O tesoureiro da Irmandade recebeu o pagamento e firmou recibo.

Instrui um carpinteiro para que providenciasse madeira e executasse as embalagens. Na hora da saída do caminhão, surgiu o prefeito municipal, (que era da família Pina) e embargou a venda. Procurei o juiz da comarca e este, examinando os documentos que tinha em mãos, disse-me que garantiria a saída dos objetos através da polícia. Saí eufórico, mas a alegria não durou, pois o vigário, informou-me que tanto o Prof. Jarbas Jaime como os irmãos Curado eram frontalmente contrários ao negócio. Preferi devolver as mercadorias e fui prontamente reembolsado. Os Curados, fazendo jus à sua aristocrática origem, espontaneamente me ressarciram das despesas feitas.

Há vinte e poucos anos fui a Pirenópolis com a finalidade específica de adquirir duas arcas de valores. Encontrei, no convento das freiras, alguns entalhes da velha Igreja do Rosário, os mesmos que já comprara e não pudera trazer.

A mais bela de todas as imagens que pertencera àquela igreja, adquiriu-a o Sr. Renzo Pagliari , em 1959. Nesta ocasião, adquiri do Prof. Jarbas uma excelente cômoda “D. José”, que transferi ao Sr. Hélio de Almeida Leite; hoje, esta peça decora o Palácio do Governo de São Paulo.

Assisti diversas vezes às “Pastorinhas”, tradicional espetáculo de Pernambuco transportado para os Pireneus. Vi também a famosa “Cavalhada”. Uma e outra merecem elogios. Conhecida escultora especializou-se em reproduzir tais “cavalhadas” em peças de barro.
Há tantos anos que não vou a Pirenópolis... Que saudade da pensão do Juanito Jaime... dos amigos que já se foram, do Benedito Pompeu de Pina, do Prof. Jarbas, do velho amigo Benjamim Gurjão, primo de Dom Aquino Correia, de tantos outros..."

Fonte: NÓBREGA, José Claudino da. Memórias de um viajante antiquário. São Paulo: Raízes. 1984, p. 91-92.

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Adriano Curado