quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O salvador da donzela

Foi um susto muito grande ali na casa do coronel Gonçalves a notícia da gravidez de sua filha donzela. E digo isso porque a moça era o recato em pessoa, além de passar o dia todo sob vigília constante dos da casa. O pai ajeitava para ela o filho de um comerciante rico na capital, coisa de juntar fortuna e ficar ainda mais influente. Agora caía a bomba sobre a cabeça de todos naquele casarão e a situação parecia sem saída.

Da janela do seu quarto lá no alto do sobrado, Aline olhava distraída para o horizonte, como costumava fazer todas as manhãs. Nem desconfiava que era o alvo das atenções e motivo de tantos dissabores no andar térreo. Pensava no noivo que não conhecia, na futura vida de casada longe daquela casa, dos pais, dos irmãos. Não havia muita coisa para fazer na vida naquela fase de aguardar casamento, e no muito podia aperfeiçoar o piano ou aprender um ponto diferente no croché.

Bem debaixo dos pés de Aline, na sala principal da casa, o coronel Gonçalves acabara de ter uma ideia que era ousada, mas que poderia dar certo e salvar a honra da filha: ela seria atacada por um maníaco. A cena necessitava ter testemunhas para parecer convincente, só que precisariam de alguém de confiança para que nada fugisse do limite de segurança. O médico da família, dr. Alonso, se opôs desde o princípio. Achava que aquilo era um absurdo e que o estado de gravidez da jovem poderia ser interrompido. "Menos mal", retrucou o pai.
O plano cresceu em detalhes, até que foi escolhido o ator. Seria Juvenal, filho do caseiro, que foi convencido a participar da farsa por alguns contos de réis. A ideia do coronel era, após o incidente, escrever ao pai do pretenso noivo e narrar tudo. Depois deixaria a critério da outra parte desistir do casamento, caso fosse um obstáculo impossível de ser transposto.

— Sou um homem de negócios — contou o coronel à esposa boquiaberta —, sei que uma oportunidade dessas não se desperdiça por conta de ser ou não a moça donzela.
— Então por que não conta para ele agora mesmo? — ainda tentou a mãe.
— Porque é diferente. Uma coisa é a moça ser vítima; outra, bandida.

No dia combinado, dr. Alonso ainda tentou algumas vezes convencer o coronel a mudar de ideia, mas foi inútil. Até se ofereceu o bom médico para se casar com ela e assim reparar o dano, só que sua pobreza financeira eliminou essa possibilidade. O mais cruel disso tudo foi que não contaram nada para Aline, sequer pediram sua opinião sobre o plano. Seria ela alvo da maior das tramas e nem sonhava com o desfecho.

Foi no dia do leilão de S. Sebastião. A frente da igreja estava lotada de gente que aguardava as prendas para arrematar. A missa já havia terminado e por isso as portas foram fechadas. Só que Aline, convencida pela mãe a subir na torre do sino, agora estava sozinha e aflita, sem compreender nada daquela esquisitice que logo viraria pesadelo. 

E foi quando o coronel Gonçalves gritou alto: "cadê minha filha?", que Juvenal recebeu permissão para começar o teatro. Ouviu-se um grito de horror lá no campanário e todos olharam assombrados a cena da jovem atacada por um encapuzado completamente nu. Enquanto os homens tentavam arrombar a porta da igreja, emperradas por conta de escoras providenciais do lado de dentro, o sino badalava abafado, sinal de que havia luta. O coronel sorria para dentro porque o realismo era o confeito que faltava.

O plano perfeito só não deu certo porque subestimaram a força interior de Aline. Ela não se deu por subjugada ante o ofensor, e quando ele menos esperava, no exato instante em que lhe rasgava a veste, foi golpeado com força pelo sino. A grande campana de bronze resvalou nas paredes do campanário e com violência lançou os dois pela janela.

Que cena triste os jovens nus, mortos sobre o lajeado, com sangue respingado na parede caiada, nas pessoas, nas prendas! Era de fato muito alta a torre sineira da igreja. E qual foi a surpresa geral ao retirarem a máscara e depararem com o pacato Juvenal no papel de tarado.

Enterraram a virgem na manhã seguinte. Sim, virgem. A história da gravidez foi inventada pelo dr. Alonso que queria se casar com sua paixão secreta. Coitado do médico, que além de perder seu grande amor, ainda perdeu a vida num acidente esquisito de charrete. O pai de Juvenal desapareceu do povoado e alguns dizem que voltou para sua terra natal, embora ninguém soubesse como, pois o homem não tinha dinheiro.

E que dizer de Juvenal? Enterram-no numa ala de indigentes do cemitério. Teria ficado ali anônimo se algum engraçadinho não houvesse mandado fazer uma lápide e nela escrever: "O salvador da donzela".

Adriano Curado

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